sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Irati - Pequenas histórias V



Procuro folhear a memória, e posicionar o sol numa daquelas manhãs dos anos 70, não atino a dificuldade, pois o brilho de então refletia no tapete verde do batatal gigante beirando a face leste do Alto da Glória, furtivamente eu pego uma folhinha de papel do bolso e rabisco a rampa gigante que ia da estratégica até os capões lá no alto, colados no laranjal e de ponto em ponto rabiscado vou construindo no papel a imagem que eu tenho na memória e o sol, e eu penso que ele também sentiu falta do velho pé de ipê roxo, da gente humilde colhendo as batatas, como uma legião de guerreiros surgidos na fumaça densa das tardes da antiga Irati, sob o olhar terno da mãe das Graças, quanto tudo deixou o branco e preto do antigo para compor a aquarela moderna que vem até nossos dias.
O que eu tinha apenas em pequenos resquícios no olhar quando criança agora surge a minha frente da tela do computador em uma fotografia antiga, a serraria Menemar, fazendo com que eu desenhe embaixo do meu rabisco um portal com improvisados traços ao qual eu chamei “a nossa Canudos”, pois verão a foto de Canudos e do bairro Menemar e apesar da semelhança ficar no aglomerado humano, o ar nostálgico remete qualquer um ao alvorecer da pérola do sul, e sem um que e nem porque vem uma saudade do que não conhecemos, quem o habitou e como foi extinto, ficando raros registros como este a povoar nossa imaginação.
O olhar pensativo nos faz viajar, e imaginamos um projetor de filmes, seguro pelas mãos históricas de João Wasilewski, vislumbramos o cadenciado exibir de slides esparramando a história em nossas saudades, o resgatável em matéria e o que o fatalismo da não existência atual relega a velhas fotos, e um olhar para a imagem no morro, nos consola de certa forma, ele sim viu o que nos faz sentir saudade, do que o progresso nos proibiu de ver.
Surpreendem-me o coração, o asfalto, as ruas calçadas não com o esmero antigo, mas um amontoado de pedras irregulares que apenas sepultam o chão, as valetas das tardes chuvosas, o passado, onde a pobreza seria motivo de dor, e o amor o pano azul que encobriu as mágoas, superando as dificuldades surgidas, e se os corações não se igualaram naqueles anos, o tempo os fez iguais, pois tudo a todos vem, e o caminho de todos é a eternidade igualitária e certa.
O que é a vida senão o que vivemos e o que recordamos.... Uma tarde de domingo subindo em turma até o laranjal, a farra da criançada que descia com os lábios ardendo de tanto chupar laranja, grátis e ao pé da planta, as noites de bate papo nas gramas dos jardins, as histórias de Pedro Malasartes, o rádio de pilha, o perfume da flor de laranjeira, a liberdade de voar em carrinho de madeira e não muito raro se espatifar no barranco de algum terreno baldio lá embaixo.
No plano em que vivíamos o nosso dia a dia, estava lá do outro lado a Santa do Morro, a esquerda, a direção do centro da cidade, ainda provinciana, a frente embaixo, algumas evidencias mais antigas, a fumaça das serrarias, atrás encima o verde das matas virgens e as assustadoras árvores gigantes dos capões escuros, e a direita o batatal, com seu imponente Ipê roxo na metade baixa... E ao fundo dele lá nos azuis distantes o inesquecível sol, o sol de meus rabiscos, antigo e belo, como um velho amor.

Edilson Souza

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